sexta-feira, 30 de abril de 2010

UMA RECORDAÇÃO



Júlio Dinis

UMA RECORDAÇÃO

Lembra-me ver-te inda infante, Quando nos campos corrias
Em folguedos palpitantes; Eras bela! e então sorrias.

Depois, na infância, eras inda, Junto ao cadáver rezavas
De tua mãe, com dor infinda; Eras bela! e então choravas.

Num baile vi-te valsando
Da juventude nos dias,
Todos de amor fascinando;
Eras bela! e então sorrias.

Dias depois encontrei-te; Nos céus os olhos fitavas;
Sem me veres contemplei-te; Eras bela! e então choravas.

Quando ao templo caminhando
Entre flores e alegrias,
De esposa a vida encetando,
Eras bela! e então sorrias.

Quando na campa do esposo
Com teu filho ajoelhavas,
Grupo inocente e saudoso!
Eras bela! e então choravas.

Num ataúde deitada
Eu te vi em breves dias,
Mimosa flor desfolhada!
Eras bela! e então sorrias.

Sorrindo, na vida entraste, Sorrindo deixaste a vida; Alguma flor que encontraste A espinhos a viste unida.

Sim, às vezes tu sorrias, E os sorrisos o que são?
Quase sempre profecias
Das penas do coração.

Eugénio de Andrade



Eugénio de Andrade

Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.

A Terra



A Terra

"Miguel Troga"

Também eu quero abrir-te e semear
Um grão de poesia no teu seio!
Anda tudo a lavrar,
Tudo a enterrar centeio,
E são horas de eu pôr a germinar
A semente dos versos que granjeio.

Na seara madura de amanhã
Sem fronteiras nem dono,
Há de existir a praga da milhã,
A volúpia do sono
Da papoula vermelha e temporã,
E o alegre abandono
De uma cigarra vã.

Mas das asas que agite,
O poema que cante
Será graça e limite
Do pendão que levante
A fé que a tua força ressuscite!

Casou-nos Deus, o mito!
E cada imagem que me vem
É um gomo teu, ou um grito
Que eu apenas repito
Na melodia que o poema tem.

Terra, minha aliada
Na criação!
Seja fecunda a vessada,
Seja à tona do chão,
Nada fecundas, nada,
Que eu não fermente também de inspiração!

E por isso te rasgo de magia
E te lanço nos braços a colheita
Que hás de parir depois...
Poesia desfeita,
Fruto maduro de nós dois.

Terra, minha mulher!
Um amor é o aceno,
Outro a quentura que se quer
Dentro dum corpo nu, moreno!

A charrua das leivas não concebe
Uma bolota que não dê carvalhos;
A minha, planta orvalhos...
Água que a manhã bebe
No pudor dos atalhos.

Terra, minha canção!
Ode de pólo a pólo erguida
Pela beleza que não sabe a pão
Mas ao gosto da vida!

Ao desconcerto do Mundo



Luís Vaz de Camões

Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.

sábado, 3 de abril de 2010

ÉS BELA




Es bela, sim, quando, corando, foges
Dum beijo perseguida;
Ou quando cedes com mais pejo ainda,
Mas na luta vencida.

És bela, sim, quando, banhada em lágrimas, Soltas mimosas queixas;
Ou quando, comovida por maus prantos, Já ameigar-te deixas.

És bela, sim, à luz do Sol nascente
Regando tuas flores,
Ou com os olhos no ocaso e o pensamento
No país dos amores.

És bela sempre, e o mesmo fogo acendes
No coração do poeta;
És bela sempre, ó linda flor do prado,
Ó mimosa violeta,

Março de 1882.(Júlio Dinis)